10 fevereiro 2006

Futebol Ciência

Se se fizessse uma taxonomia do público interessado pelo futebol de alta competição, os extremos ficariam ocupados pelos que se interessam por este espectáculo desportivo, os espectadores, e os que vivem uma cerimónia religiosa, os aficionados de uma cor clubista (os brasileiros chamam-lhes torcedores). Entre o espectador e o torcedor situam-se várias espécies de espectador e de aficionado. O espectador consome um espectáculo, o torcedor é elemento de uma cerimónia religiosa. Para o espectador, o jogo de futebol termina, ao fim dos noventa e alguns minutos regulamentares; para o torcedor o jogo tem vésperas e oitavário, pois que ele o assumiu como coisa sua. Para o espectador, o futebol é lazer; para o torcedor, o futebol é religião. Os milhares e milhares de crentes, que vão rezar a Fátima, assemelham-se aos milhões de torcedores que, em todo o mundo, vivem religiosamente o futebol-espectáculo.Segundo os teólogos, a palavra religião provém do latim religare. Pretendem assim afirmar que a religião liga-nos, pela caridade, a Deus e às outras criaturas. Também os torcedores das equipas de futebol mais representativas se sentem ligados à sua equipa, constelada de deuses e de mitos. Para eles, os jogos de futebol em que participam são, mutatis mutandis, a sua missa dominical, o culto da sua devoção. Para eles enfim, pelas suas equipas sentem-se ligados aos novos deuses e aos novos mitos: os clubes que o mundo aplaude e os artistas de qualidades invulgares para a prática de um desporto. E sentem-se em íntima unidade com os apaixonados do mesmo clube, com os que erguem, em extâse, a mesma bandeira. A humanidade, até o futebol o comprova, não pode viver sem ídolos. E o que são, se não ídolos, o Figo, o Zidane, o Raúl, o Ronaldo, o Roberto Carlos, o Rui Costa, etc., etc.? Escutei um dia a Helenio Herrera, era ele treinador do Clube de Futebol “Os Belenenses”, que o grande jogador provinha, quase sempre, de uma família pobre e de um contexto, humilde também, que lhe permitiram o desenvolvimento das qualidades inatas, em liberdade e em contacto permanente com dificuldades que era forçado a superar. Pelé, Maradona, Garrincha, Eusébio e outros mais exemplificam o que vem de afirmar-se. Assim convém aliás aos seres humanos de excepcional estatura física, intelectual, moral, política e desportiva. No quase nada, tiveram engenho e arte para criar o quase tudo! A sua história é uma história de prodígios... que deslumbram e excitam os torcedores!Estes são monoteístas. Um só Deus adoram e cultuam: o seu clube! Por ele, se alegram e sofrem: são naturalmente religiosos! Como eram também os Jogos da Grécia Antiga. Na Modernidade, a larga e cuidadosa informação que dela dispomos permite-nos adiantar que, sob o pontificado de Galileu e Descartes, Newton e Kant, o racionalismo deu relevo ao corpo-instrumento e olvidou o corpo como valor. A educação física nasceu, por este motivo, e acentuou a separação natureza-cultura. O desporto entendeu-se então como meio de educação física, ao lado do jogo e da ginástica, e ficou como actividade física até hoje, diante da indiferença e o desinteresse de muita gente responsável. Ora, o desporto (e como tal o futebol) não é só uma actividade física porque exige constância nas regras, preparação eficaz e procura incessante da performance e da vitória. Há, no futebol, ciência, técnica, adaptação, criatividade e ainda drama e por isso cultura que emerge da natureza. O futebol é hoje bioconsciência em constante evolução, pois que não cessam as condições que a permitem.É preciso, no desporto, ultrapassar esta ideia falsa de que a realidade é dupla e que pode cindir-se em dois domínios distintos: a matéria, específica da tecnociência e o espírito próprio da filosofia e da teologia. A realidade é uma só: ciência e filosofia são duas visões diferentes da mesma unidade concreta. Em tudo há um aspecto profano e um aspecto sagrado. No futebol acontece outro tanto. O futebol é ciência e religião: é ciência quando é predominantemente razão; é religião quando é predominantemente crença e fé. Mas a predominância quer da ciência, quer do sentimento, não esconde que há fé na ciência e razão no sentimento religioso. De facto, o futebol não se reduz ao conhecimento científico. Se assim fosse, não haveria tantos torcedores!

Manuel Sérgio

1 Comments:

At 12:23 da manhã, Blogger Goulart pontapeou...

Palavras para quê...!?

 

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